Resenha do livro
Outros olhos para um comunista brasileiro - A biografia de Lindolfo Hill
A memória de Raimundo Santos (1943-2020)
por Ricardo José de Azevedo Marinho
Alexandre Müller Hill Maestrini. Lindolfo Hill: um outro olhar para a esquerda. São Paulo: Instituto Caio Prado Jr., 2021. 250 p.
É o próprio Lindolfo Hill (1917-1977) que voltando de uma viagem em missão a Paris em novembro de 1945 nos fornece uma das chaves para a leitura de sua biografia pelo seu sobrinho-neto: “assinalar a ação internacional dos trabalhadores na nova fase de construção pacífica agora inaugurada para todos os povos no sentido do estabelecimento de forças superiores de existência democrática para a Humanidade.” Essa passagem resgatada por Alexandre Müller Hill Maestrini foi à razão de ser de Hill e é amplamente confirmada nas páginas da biografia. Não se pode ignorar o fato de que o protagonista do livro é um dos nossos maiores comunistas do século passado, e não se pode escapar de ler sua biografia à luz do seu tempo e do nosso. Magnético e fascinante é o exercício biográfico de entrelaçamento entre a narração de uma biografia de um brasileiro comunista no século XX e a história de uma grande política, entre a reflexão gerada pela experiência pessoal e aquela gerada pelo operário da construção civil, entre a sua vida e o seu tempo e a observação do biografo de ambos. Tal perspectiva permite ao leitor a abertura de um horizonte que atende a todos e todas. A leitura da biografia de Hill é uma oportunidade para repensar questões decisivas sobre nosso passado recente nacional e internacional, e para isso contribuem vários níveis de articulação do livro do sobrinho-neto, a saber: a reconstrução cronológica dos acontecimentos pessoais e políticos; a evocação da trajetória comunista; o trabalho dos laços de Hill com certos países e culturas. Este fragmento pretende apresentar o núcleo mais importante da bela investigação de Alexandre Müller Hill Maestrini: ideias e teorias não viajam - para usar uma imagem do palestino Edward Said (1935-2003) - espontaneamente graças à sua natureza ou força comunicativa e nem sempre aleatoriamente. Em vez disso, circulam em espaços e tempos sociais (contextos a serem identificados e circunscritos) sulcados por relações de poder e nas teias de redes de relações nas quais os sujeitos, com suas atitudes historicamente conformadas e seus recursos, 1 Professor do Instituto Devecchi e da Unyleya Educacional. desempenham funções ativas de mediação. Esta é, portanto, a lente através da qual o sobrinho-neto realiza sua investigação. Qual é a sua estrutura? O texto está dividido em várias partes e autores e autoras. O prefacio, apresentação, impressões e posfácio são de colaboradoras e colaboradores. Da introdução até o último capítulo do livro temos, contando com eles, vinte e oito capítulos. A história pessoal de Hill é, antes de tudo, a de um pedreiro que aderiu ao comunismo muito cedo e que permaneceu ligado a ele por toda a sua vida. Órfão de pai com um mês de vida, de família com raízes germânica arruinada pela perda e pela crise, ele deve sua sobrevivência ao esforço de sua mãe e da solidariedade familiar. Os traços deixados por tais processos são indeléveis. Com notável coerência, Hill sempre reconheceu que o sonho comunista o acompanhou permanentemente. Diante disso, a biografia parece marcada por uma forte ética de convicção política e cultural, sempre submetida pelo protagonista a um código estoico e, ao mesmo tempo, por sua própria admissão, indulgente. Seguindo esse duplo registro, a biografia de Hill nos oferece uma série de considerações sobre o significado de pertencer ao comunismo, alternando a intervenção da história com o fluxo da memória. Deste ponto de vista, a sua biografia acaba por abrir uma frente de reflexão largamente afastada da historiografia do nosso tempo e dar partida nas tentativas de preencher uma grande lacuna, que se constituiu nas razões da opção pelo comunismo. Ou seja: a razão pela qual o comunismo atraiu tantos da geração de Hill, junto com a explicação do que significava para eles ser comunistas, é um tópico fundamental na história do século XX. Hill tornou-se comunista no Brasil entre os anos 1930 e 1940, no processo da adolescência para vida adulta, da Revolução de 1930 até 1942 com a entrada do nosso país na Segunda Grande Guerra. Sua história pessoal foi marcada por acontecimentos traumáticos: o empobrecimento causado pela grande crise econômica, as movimentações repentinas e as ilegalidades políticas. Mas seu acento recai sobre o impacto e a invasão da política, sobre a impossibilidade de escapar de uma escolha na vida incandescente da Revolução de 1930 e no fervilhar da crise da constituição de 1934. Sua trajetória mostra que foi Juiz de Fora que oferece a centelha para se tornar comunista para o resto da sua vida, o que significou, como bem narra o sobrinho-neto, uma vida que perderia sua própria natureza e sentido sem o projeto político ao qual se dedicou desde tenra idade, mesmo que esse projeto estivesse destinado ao fracasso. Em outras palavras, a influência das circunstâncias históricas são como mostra o livro, tão decisivas e indeléveis nas orientações subjetivas a ponto de tornar-se lógicas as escolhas extremas. Por isso a biografia mostra ser impensável, naqueles momentos, identificar-se com as forças tradicionais daquilo que a historiografia chama de República Velha, e tampouco a opção da Revolução de 1930 e depois ambas oligárquicas e para ele estavam excluídas, pois sua identidade germânica e brasileira, o apontava para uma vocação cosmopolita. Mesmo tendo em conta a confusão que reinava na época e o espírito disciplinar inerente aos comunistas, segue sendo difícil encontrar explicações para a cegueira com que obstinadamente apontaram a experiência da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) como o principal caminho. A bela biografia juiz-forana de Hill do seu sobrinho-neto, fruto de cinco anos de pesquisa, merece e certamente terá sequência, pois as lacunas que envolvem seu mandato de vereador ainda estão por se fazer, sobretudo pelo que acrescentará e atualizará a história política e cultural da cidade. Juiz de Fora, no início da década de 1930, era um local de engajamento de trabalhadores e para Hill o foi por meio de uma organização intitulada União Operária na “Manchester Mineira”, o que filia a cidade ao francês Alexis de Tocqueville (1805-1859), o alemão Friedrich Engels (1820-1895) e o inglês John Maynard Keynes (1883-1946). Tal engajamento no clima de violência política entre os anos de 1932 e 1937 traduz, para um jovem adolescente quase sem família e sem perspectiva, um espírito de radicalidade fundado em uma boa dose de indignação com o status quo. Desde a pesquisa de primeira mão, o livro mantém densidade, um combate corpo a corpo com as fontes, e uma consistência possível. Uma riqueza para o Alexandre Müller Hill Maestrini e um gosto pelos seus fãs do gênero: mas que gênero? Biografias? Se história, qual? Um radicalidade de esquerda voltado para a conquista do poder, dotado de uma visão potente da política e alimentado pela precariedade de uma democracia capitalista que não era reconhecida pelas gerações nascidas após a Segunda Guerra Mundial: estes são os traços essenciais do comunismo no Brasil dos anos trinta. Por outro lado, esse não era o único componente da utopia comunista, nem os únicos a distingui-las de outras aspirações para fundar uma nova sociedade. A questão problemática do carácter "científico" do marxismo, do internacionalismo e, mais ainda, a consciência dos comunistas de que no caminho para a utopia a tragédia os esperava também teve um papel decisivo. Assim, um ethos militar (que foi trazido por Luís Carlos Prestes [1898-1990]) se sobrepôs ao sectário, expressando a ideologia da dureza imposta aos revolucionários, imortalizada nas palavras de Bertolt Brecht (1898-1956): Oh, nós / Que queríamos preparar o solo para a gentileza / Não conseguimos nós mesmos ser gentis, do poema Aos pósteros (1938)2. No entanto, a experiência do antifascismo para Hill foi determinante na sua formação política (onde a Conferência da Mantiqueira do Partido Comunista do Brasil – PCB, realizada em 11 de agosto de 1943, foi decisiva), como se evidencia, em particular, pelo difícil contexto do Estado Novo e a disputa para que o Brasil se afastasse da inspiração das reformas sem liberdade adotadas na Itália nos anos 1920 e na Alemanha dos anos 1930 e se aproximasse do New Deal, num paralelismo lucido com o Antonio Gramsci (1891-1937) no cárcere italiano e suas reflexões sobre o americanismo como um espaço possível civilizatório no tempo das Frentes Populares. O sobrinho-neto se refere ao clima anticomunista vigente na década de 1950, em que todo comunista tinha que ser um "agente" de Moscou, sem trilhar o tom e reconhecer que seu tio-avô sofrerá uma caça doravante (tal como aconteceu nos mesmos Estados Unidos da América, mas agora sob o McCartismo [1950-1957]) até o final de sua vida. Em todo caso, como para muitos outros comunistas, também para Hill os problemas só se avolumavam e aumentou ainda mais em 1956, um ano vivido à beira do equivalente político de um colapso nervoso coletivo. E ao mesmo tempo teve a alegria de sua menina nascer. Contudo, o livro não adentra por ausência de fontes no trauma advindo das revelações de Nikita Khrushchev (1894-1971) e nem da invasão soviética da Hungria. A despeito desses eventos tudo leva a se pensar que Hill tinha plena consciência histórica da década do pós-guerra onde viveu e sentiu na pele a cruzada mundial do anticomunismo ocidental durante a guerra fria e a convicção nascida em 1955 de que os dirigentes soviéticos não contavam a verdade sobre algo que dizia respeito à própria natureza das responsabilidades de um comunista. Como politicamente tinha aderido ao partido comunista entre os anos 1930-1940 e ter pertencido à era da unidade antifascista e da Frente Popular e à geração unida por um cordão umbilical quase inseparável da esperança na revolução mundial e de sua sede original, a revolução de outubro de 1917. A esta motivação acrescenta o orgulho pessoal, a vontade de se afirmar sem as facilidades óbvias que a renúncia à adesão comunista teria 2 Vallias, André. Bertolt Brecht poesia. Introdução e tradução André Vallias. - 1. ed. - São Paulo: Perspectiva, 2019. (Signos; 60). assegurado tal como Gramsci também o fez no cárcere diante da proposta indescritível de Mussolini (1993-1945). Seja como for Hill nasceu no ano da revolução de outubro que criou o movimento comunista internacional e o 20º Congresso do Partido Comunista da União Soviética o destruiu. No entanto, a natureza desse cordão umbilical é de uma fragilidade contumaz. É realmente possível argumentar que a URSS foi infinitamente menos importante para aqueles que como Hill aderiram ao comunismo na era do antifascismo, enquanto a ideia de revolução mundial fosse algo totalmente vago. E o fio biográfico do sobrinho-neto deve ser compreendido mais com as transformações que levaram a dissolução gradual do ser comunista e a resistência do tio-avô em perceber tal processo, que, no entanto, teve uma realidade própria para ele marcante durante meia década. No livro fica claro que as mitologias que cercavam a esquerda nos anos 1960 em nada contribuíram para a compreensão do que se passava aqui e em alhures. Como entender a China e Cuba e suas idealizações revolucionárias românticas bem como 1964 e a identificação anos depois com o Partido dos Panteras Negras e o Vietnã, que representam sinais efémeros destas novas simbologias políticas. Do ponto de vista da biografia do sobrinho-neto, por outro lado, mostra toda a diferença entre a geração de Hill e a dos protagonistas de 1968. Mas a incompreensão da época não constitui para Hill uma oportunidade de questionar de como a cultura política comunista havia se esclerosado e foi ficando cada vez mais incapaz de acompanhar os novos sinais socioculturais da década de 1960 que começavam a deixar sua marca. Desta forma, fazer a biografia de Hill envolveu um trabalho muito cansativo, com uma variedade impressionante de documentos: as poucas declarações conseguidas são, é claro, não as principais do vereador, mas também todos os vestígios daquilo que as precedeu e as tornou possíveis e que estão por ser reveladas. Significa mover-se entre muitos arquivos (jornais, reuniões, universidades, partidos políticos, depoimentos familiares, cartas privadas, entre a guerra quente e fria e depois...) que foram as fontes principais. Muitas vezes – e é o que se lê – Alexandre Müller Hill Maestrini leva em consideração, de maneira adequada, em todas as passagens importantes, reposicionando a representação de Hill em sua própria rede de fontes. A composição desses materiais exige que reconheçamos as lacunas, os elos que faltam e procuremos preenchê-los com uma boa imaginação, uma faculdade preciosa, ainda que um pouco suspeita. Ficamos entusiasmados com várias passagens, que podemos considerar corajosas e convincentes. Hill de Alexandre Müller Hill Maestrini sai pouco depois da summa biográfica de Richard J. Evans Eric Hobsbawm: uma vida na história (São Paulo: Planeta, 2021. 720 p.). A primeira apresentação pública de Lindolfo Hill: um outro olhar para a esquerda aconteceu quando o Brasil ultrapassava 590 mil mortes pelo coronavírus e ligou o nome de Hill à mobilização pela vida e sua biografia não pode ser pensada como algo indiferente aos conflitos hodiernos. Leiam o Evans e a belíssima contribuição de Alexandre Müller Hill Maestrini de que além de um digno presente póstumo a sua mãe Marilda Hill Maestrini (1943-2021), apresenta um símbolo e exemplo daquilo que de melhor a utopia do comunismo lega ao século XXI.
5 de novembro de 2021
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